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GRES Mocidade Independente de Padre Miguel divulgou sinopse  do enredo para o carnaval 2020

A Escola de Samba Mocidade Independente de Padre  lançou no último 
sábado (08/06) a sinopse de seu enredo para o carnaval 2020:  “ELZA 
DEUSA SOARES”,em homenagem à cantora Elza Soares. O enredo  será 
desenvolvido pelo carnavalesco Jack Vasconcelos.

Confira a sinopse.

GRES Mocidade Independente de Padre Miguel – Carnaval 2020
Enredo: “ELZA DEUSA SOARES”

A menina magricela nascida no distante bairro de Padre Miguel, menos 
de 40 quilos de pura insistência em sobreviver, desembarca no badalado 
programa de calouros de Ary Barroso. Equilibrava bom punhado de 
alfinetes para conter os panos todos do conjunto que sobrava e sambava 
no corpo. O sonho de ser a moça bonita do rádio determinava as 
cantorias da pequena – lata d’água na cabeça – cuja infância havia 
sido subtraída pelo suor de sol a sol dos afazeres domésticos. Já em 
posição debutante no palco transmitido em ondas aos ouvintes, as 
lembranças de pueris duetos com o som do louva-a-deus e as espiadelas 
no pai violeiro garantiam relativa técnica. Mas a força para 
transcender o destino foi a autêntica locomotiva. O autor de “Aquarela 
do Brasil” fez as honras sem nenhum pingo de honra quando mirou o 
pedacinho de gente posicionado bem na boca de cena da História: “de 
que planeta você veio, minha filha?”. Gargalhadas histéricas na 
plateia, só que por breves segundos. Na aquarela de Ary, não havia 
destaque para a cor da resposta visceral, raio cósmico, cortina do 
passado dilacerada ante a metamorfose de uma divindade em flor: “eu 
vim do planeta fome”. Desvario. Apoteose. A primeira.

Com o pedestal voltado à glória, soltou o talento até raspar o fundo 
do tacho d’alma para, ao fim, desabar nos braços daquele gênio letrado 
bem menos sabedor desse chão do que a sua humanidade supunha. Ora, o 
apresentador jamais imaginaria negra e pobre a arte-final esquecida 
pelo maior clássico que compusera. Próxima ao gongo em silêncio, e 
mergulhada na letra de “Lama”, estava, possivelmente, a imagem de 
Deus. Deusa – corrijamos – de joelhos e em adoração. Mulher. Que 
irrompeu a pergunta insensível, o direito que tinham para humilhá-la, 
as dificuldades do berço, o preconceito castrador e invasor do íntimo 
feminino, o racismo. A partir dali, nasceu uma estrela. Voz das vozes 
abafadas. Microfone de potente rouquidão rascante para os ais dos 
humildes. Água santa a revalidar existências e também as 
reminiscências ligadas à mãe lavadeira, ofício da roupa batida que faz 
marcar o ritmo de um futuro quase sempre estéril.

Curiosa a sina de se inserir e a outras carnes pretas no mapa oligarca 
branco forjado na marra e na régua. Numa só frase, desvelou o fogo de 
realidade que intelectuais com canudos enrolados nas grandes 
universidades mal conseguiram reconhecer brasa. Sua música se tornou 
trono matriarcal para denunciar as contradições da gigante “mátria” 
pouco gentil. Obrigada a trocar alianças quando a companhia eram as 
bonecas, deu à luz muito cedo, mas leite também aos que não pariu: 
holofote sobre os brasis ancestralmente invisíveis. E foi, justamente, 
da ordem do invisível, ou etéreo, certa passagem marcante e definidora 
– ainda nos tempos da dureza primordial. Prestes a ser atacada por uma 
vaca que pastava no entorno de casa, tratou de encarar o bicho bravo 
olho no olho. A coragem intuitiva reconfigurou a quase tragédia: 
recebeu uma inacreditável lambida do queixo à testa, passeio lingual 
com o aparente tamanho da eternidade.

Afogada na saliva e surpresa por esta viva, entendeu o banho viscoso 
como a unção protetora que a conduziria adiante. Seguiu. Limite? O 
céu, é claro. Pitoresco batismo em religião própria, cuja tábua de 
mandamento único ostentava a interpretação pessoal dos segredos de 
cima, lá onde mora o Guerreiro. Bruxa, mandingueira, sacerdotisa de 
poderes e sentimentos indomados. Fada canção. Feiticeira a macerar 
folhas de inspiração e fé no eu iluminado. Unguento, incenso, veneno. 
Movimento. O real e a quimera em qualquer batuque – do terreiro ao 
bar, do culto ao cabaré, da intimidade do chatô ao infinito da nação 
profunda. Suingue de credo, cruz ou cura.

E aí não tardou, monumento vocal velozmente consagrado, para brilhar 
mundo afora e país adentro. Ergueu-se samba sincopado de trejeito 
característico, o jazz agridoce banhado na pimenta da terra que tudo 
dá, nosso divã social, espelho e síntese no mesmo metro e meio de 
entidade. Bossa nossa. Sobre o palco de asfalto da folia, encontrou 
outra estrela, de milhares em cortejo e também filha de Padre Miguel – 
a Mocidade –, tão independente quanto ela. E mergulhou na bênção 
mística da percussão, que alforria os corpos domesticados e faz do 
festival do couro a alegria de uma cidade ao celebrar a dádiva do 
pertencimento. Mas foi a obsessão por cantar o amor sem pudores a sua 
forma categórica de pertencer. Amor à arte, às escolhas, à distância. 
Ao guri. Ao malandro. Ao Mané. Amou e foi amada. Sem medo e sem 
vergonha. Sem limites. Ou quase: apesar da vocação para inspirar 
gentes no embalo da natureza passional, pagou o preço ao escolher 
decolar no torrão que censura as asas dos filhos. Tombou. Cadente 
estrela. Solitária.

Bailarina equilibrista que sempre teceu a vida a partir do fio da 
liberdade, experimentou o da navalha quando os malabares com os quais 
distribuiu encanto viraram pedras contra si. A redentora passou a 
algoz no picadeiro moral dos supostos bons costumes. Sentiu o tapa, a 
ferida, o esquecimento. E pedaços arrancados. De novo. Porém, o 
trapézio que lança ao Olimpo, e vê desabar se as mãos deslizam no voo 
em cego dos mistérios de existir, tem no final do abismo uma rede de 
proteção fraternal. Dura na queda, conseguiu ser devolvida do fosso da 
orquestra. Mais forte. Tal qual a língua – aqui, a humana – que roça a 
nuca e reacende o arrepio. Diva sensorial a nos ensinar sobre a 
delícia de cultuar a própria carne mal taxada e o espírito, na cruzada 
em desafio aos intolerantes. Pele e osso que sentem lava escorrer e 
exclamam política transgressora, para inferno e desnudar dos caretas. 
Cóccix, peito, nervos, coração, pescoço. Garganta.

Ela, então, coloca desordem na preconceituosa ordem vigente, dando ré 
no apocalipse com o dito planeta fome completamente desgovernado. Pula 
o muro, alastra-se no proibido e perfuma a missão – herdada desde o 
show seminal – de fazer multidão frenética os carimbados como minoria. 
Eis a incendiária porta-estandarte de quem inclui, desafia, abraça, 
respeita, desatina, desata, transforma e se transforma. Do 
protagonismo feminino radicalmente contrário à mão levantada para a 
mulher. Dos amantes que, na embriaguez libertária, gozam sensualmente 
o afeto sem mordaça e constelam aflição pelo beijo ardente. O ato de 
transmutação do fazer artístico em grito dos incontroláveis por todos 
os milênios.

No altar do samba brasileiro, a Mocidade encontra o elo fundamental 
perdido e celebra a apoteose de uma estrela da canção ao reinventar o 
agora. O seu nome é agora – menina, senhora, doutora do tempo. A 
mensagem que deixamos para o próximo carnaval pinta o Black e tem o 
Power, traz a revolução de um abalo sísmico, a urgência explosiva de 
um novo Big Bang, põe Exu nas rodas, nas escolas, na prosa, é rua, nua 
e crua:

Deus é mesmo mulher. Deus é negra.
Ouçam a sua palavra que nos invade.
Salve a Mulher do Fim do Mundo.
Salve Elza Deusa Soares

Carnavalesco: Jack Vasconcelos

Sinopse: Fábio Fabato

Pesquisa e Colaboração: André Luís Junior

Referências (além da discografia de nossa Elza Deusa Soares):

CAMARGO, Zeca. Elza. Rio de Janeiro: Leya Casa da Palavra, 2018

CASTRO, Rui. Estrela solitária – um brasileiro chamado Garrincha. Rio 
de Janeiro: Cia das Letras, 1995.

DINIZ, Alan; FABATO, Fábio; MEDEIROS, Alexandre. As três irmãs: como 
um trio de penetras “arrombou a festa”. Rio de Janeiro: NovaTerra, 
2012, Família do Carnaval.

LOUZEIRO, José. Elza Soares: Cantando para não enlouquecer. Rio de 
Janeiro: Editora Globo, 2010.

PEREIRA, Bárbara. Estrela que me faz sonhar. Rio de Janeiro: Verso 
Brasil, 2013, Cadernos de Samba.

SUARES, Gerson. De pernas para o ar: minhas memórias com Garrincha. 
Rio de Janeiro: Oficina Raquel.

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