Seguindo a linha de enredos autorias do carnavalesco Leandro Vieira, a
Estação Primeira de Mangueira levará para a Sapucaí em 2020 a
biografia de Jesus Cristo. Com o enredo “A VERDADE VOS FARÁ LIVRE”, a
escola difundirá as ideias pacifistas e igualitárias daquele cujo a
história, de vida e de morte, tende a ser a mais popularmente
divulgada no imaginário coletivo mundial.
Segundo Leandro, que assina seu quinto carnaval na Mangueira, o tema
encontra similaridade na história da agremiação com o apresentado no
carnaval de 2003 – quando a Estação Primeira levou para a avenida uma
temática bíblica tendo a figura de Moisés e a libertação dos hebreus
como tema do enredo “Os dez mandamentos: o samba da paz canta a saga
da liberdade” – porém, acrescido do sabor crítico de um discurso que
caminha na contramão e pretende levantar questões contemporâneas como
as levantadas no carnaval de 2019.
O Cristo histórico que ” A VERDADE VOS FARÁ LIVRE” leva para o
carnaval, é aquele que nasceu pobre, viveu ao lado dos menos
favorecidos e condenou o acúmulo de riqueza. O mesmo que se insurgiu
contra a hipocrisia dos líderes religiosos do seu tempo e colocou-se
contra a opressão do Estado. A liderança pacifista, que amou de forma
irrestrita, sem preconceitos ou discursos de ódio, e por isso foi
condenado, torturado e morto.
“Sigo acreditando no desfile como um lugar de arte de auto nível. A
vida de Cristo já foi material para o desenvolvimento estético de
diferentes manifestações artísticas. Cristo já esteve nas salas de
cinema, nos teatros e em exposições públicas realizadas em museus e
galerias. É temática recorrente para pintores, escultores, músicos e
mais recentemente, tema adaptado para a teledramaturgia brasileira.
Como o desfile realizado na Sapucaí, aos meus olhos, é espaço para
arte de alto nível e eu não corroboro com a visão preconceituosa de
que os desfiles das escolas de samba seja “festa pra botar bunda de
fora” e sim arte “maiúscula”, debruçar-me sobre esse tema é pra mim
seguir com uma das mais antigas tradições de temáticas artísticas da
história das artes visuais”, finalizou Leandro Vieira.
Confira a sinopse.
GRES ESTAÇÃO PRIMEIRA DE MANGUEIRA – CARNAVAL 2020
Enredo: A VERDADE VOS FARÁ LIVRE
Carnavalesco: Leandro Vieira
“Vou pedir que me levem lá pro céu
Que cada dia chega mais perto do morro
E onde já viram Deus compondo
Um samba para escola desfilar”
(SAMBA de Hermínio Bello de Carvalho e Maurício Tapajós)
A VERDADE VOS FARÁ LIVRE
Nasceu pobre e sua pele nunca foi tão branca quanto sugere sua imagem
mais popular. Sem posses e mais retinto do que lhe foi apresentado,
andou ao lado daqueles que a sociedade virou as costas oferecendo-lhes
sua face mais amorosa e desprovida de intolerância. Sábio, separou o
joio do trigo, semeou terrenos férteis e jamais deixou uma ovelha
sequer para trás.
Exaltou os humildes e condenou o acúmulo de riqueza. Insurgiu-se
contra o comércio da fé e desafiou a hipocrisia dos líderes religiosos
de seu tempo. Questionou o poder do império romano e condenou a
opressão. Seu comportamento pacifista e suas ideias revolucionárias
inflamaram o discurso dos algozes que passaram a excitar o estado a
decretar sua sentença. O fim todos sabemos: Foi torturado, padeceu e
morreu.
Séculos depois, sua trajetória ainda anda na boca dos homens e em seu
nome, para o mal dito “de bem” – e com rígido contorno de moralidade –
muito já foi realizado de forma estanque ao sentido mais completo do
AMOR por ele difundido. O amor incondicional, irrestrito e ágape.
Por isso, quando preso à cruz, ele não pode ser apresentado como um.
Ser um, exclui os demais. Preso à cruz, ele é a extensão de tantos,
inclusive daqueles que a escolha pelo modelo “oficial” quis esconder.
Sendo assim, sua imagem humana não pode ser apenas branca e masculina.
Na cruz, ele é homem e é também mulher. Ele é o corpo indígena nu que
a igreja viu tanto pecado e nenhuma humanidade. Ele é a ialorixá que
professa a fé apedrejada e vilipendiada. Ele é corpo franzino e sujo
do menor que você teme no momento em que ele lhe estende a mão nas
calçadas. Na cruz, ele é também a pele preta de cabelo crespo. Queiram
ou não queiram, o corpo andrógino que te causa estranheza, também é a
extensão de seu corpo.
Sem anunciar o inferno, ele prometeu que voltaria. Acredito que, se
ele voltasse à terra por uma encosta que toca o céu – para nascer da
mesma forma: pobre e mais retinto, criado por pai e mãe humilde, para
viver ao lado dos oprimidos e dar-lhes acolhimento – ele desceria pela
parte mais íngreme de uma favela qualquer dessa cidade. Talvez na
Vila Miséria*, região mais alta e habitada do Morro de Mangueira. Ali,
uma estrela iluminaria a sala sem emboço onde ele nasceria menino
outra vez. Então, ele cresceria entre os becos da Travessa Saião
Lobato*, correria junto das crianças da Candelária*, espalharia suas
palavras no Chalé* e no “Pindura” Saia*. Impediria que atirassem
pedras contra os que vivem nas quebradas e nos becos do Buraco
Quente*. Estaria do lado dos sem eira e nem beira estranhando ver sua
imagem erguida para a foto postal tão distante, dando as costas para
aqueles onde seu abraço é tão necessário.
Se sobrevivesse às estatísticas destinadas aos pobres que nascem em
comunidades, chegaria aos 33 anos para morrer da mesma forma. Teria a
morte incentivada pelas velhas ideias que ainda habitam os homens. O
amor irrestrito ainda assusta. A diferença jamais foi entendida.
Estender a mão ao oprimido ainda causa estranheza. Seria torturado com
base nas mesmas ideias.
Morto, ressuscitaria mais uma vez e, por ter voltado em Mangueira,
saudaríamos a possibilidade de vermos seu sorriso amoroso novamente
com o que aqui fazemos de melhor. Louvaríamos sua presença afetuosa
com samba e batucada. Vestiríamos todos nossa roupa mais cara. Aquela
de paetês e purpurina. De cetim com joias falsas. Desfilaríamos diante
dele e, em seu louvor, instauraríamos a lei que rege nossos três dias
de folia. Sem pecado, irmanados e em pleno estado de graça.
Explicaríamos nessa ocasião que a cruz pesada que carregamos como
fardo ao longo do ano nos é tirada das costas no carnaval. Por ter
vencido a morte e sem ter o peso de sua cruz nas costas, ele sorri
para a baiana que desce para se apresentar. Ele acena com a mão
direita para a passista que amarra a sandália, enquanto a mão esquerda
dá a benção para o ritmista que rompe o silencio com a levada de seu
tamborim.
Fitando o céu, ele parece ver algo ou alguém acima da linha do
horizonte . Sorri, como se pego em meio a brincadeira e se soubesse
humano também. Entendendo que ali ele é rebento e que todos, sem
exceção, são seu rebanho; ciente de que o pecado, por vezes, é
invenção para garantir medo e servidão, ele pede para que toda essa
gente que brinca anuncie enquanto canta sorrindo: A VERDADE VOS FARÁ
LIVRE.
Vila Miséria* Travessa Saião Lobato* Candelária* Chalé* Pindura Saia*
Buraco Quente* – Todos os nomes referem-se a localidades ocupadas pela
comunidade do Morro da Mangueira.
Rio de Janeiro, Julho de 2019.
PESQUISA, DESENVOLVIMENTO E TEXTO: LEANDRO VIEIRA