A Escola de Samba São Clemente apresentou no último sábado (11/05) a
sinopse do enredo “O conto do vigário”, que a agremiação apresentará
no próximo carnaval, na Marquês de Sapucaí, pelo Grupo Especial.
O tema será desenvolvido pelo carnavalesco Jorge Silveira, em seu
terceiro ano consecutivo na Escola.
Confira a sinopse.
O Conto do Vigário
“A regra é clara”: nesta terra inventada, é certo o desacerto.
Frase forte. Porém, é mais forte ainda o histórico de malandragem que
assola Pindorama. O tempo passa e fica cada vez mais difícil enxergar
uma luz no fim do túnel. A capacidade da malandragem de se reinventar
encontrou sombra e água fresca no Brasil: já faz tempo que tem gente
tirando proveito da gente, ficando com a fatia maior do bolo. A
inocência e esperteza travam um duelo secular por essas bandas. Do
peixe pequeno ao espadaúdo, a arte de se dar bem sem muito esforço se
proliferou em nossa nação sem noção. O engano é oficial: e isso vem de
longe…
Nossa história começa cercada pelas Minas Gerais. Na Minas dourada,
barroca, ao som de sinos nas torres de igrejas e carroças rangendo
pelas vielas e ladeiras – lá pelos idos do século XVIII, mais
precisamente na rica Ouro Preto. Uma terra de tanta fartura mineral
que despertou a atenção de pessoas dispostas a desfrutar de tamanha
prosperidade sem muito esforço. Mas digo que o ponto inicial de nossa
saga não começa com a cobiça pelo ouro. Nosso marco inicial é
pitoresco e envolve os personagens mais improváveis: uma santa, um
burro e um vigário.
Naquela ocasião, duas igrejas disputavam uma imagem de Nossa Senhora.
A animada querela era entre as paróquias do Pilar e da Conceição. Para
resolver a questão, um dos dois vigários – o da igreja do Pilar –
propôs uma forma no mínimo criativa de solucionar o problema: “Amarrem
a santa num burrico. Coloquem-na entre as duas paróquias. Deus guiará
o inocente animal até a casa que deverá abrigar a Santa Imagem!”
Assim foi feito. Lá vai o burrico pelas ladeiras de Ouro Preto,
carregando no lombo a imagem da Mãe de Deus e a fé da boa gente do
lugar. No entanto, o povo não contava com a astúcia do vigário: era
esperto o santo homem! O pároco que teve a ideia fez a proposta com
tudo já planejado, uma vez que já era seu o burro apostado! O bichinho
só seguiu o caminho de casa! Muitas outras versões existem para esse
caso, mas para nós fica esse como o registro mais válido, já que é por
causa disso que toda vez que alguém é por uma boa história enganado,
diz a pessoa ter caído no “conto do Vigário”.
O episódio acima ilustra de maneira bem jocosa o espirito da coisa.
Essa malandragem encontrou terreno fértil na colônia controversa, sem
rumo e sem lei, onde essa vigarice criou raiz. Desde que os
portugueses aqui chegaram, sempre teve alguém dando um jeito de se dar
bem em cima da inocência alheia. Do mais humilde ao mais poderoso,
sempre surge uma história bem contada, de alguém querendo levar
vantagem. Sem orgulho, carregamos essa chaga da enganação, é verdade.
Sempre surge um novo malandro reinventando a malandragem – e foi com o
crescimento das grandes cidades, cheias de novas oportunidades, que os
vigaristas encontraram terreno fértil para aplicar seus golpes sobre
os incautos. Do “bilhete premiado” à “máquina de fazer dinheiro”, a
criatividade dos enganadores em aplicar golpes em nosso país desafia o
bom senso. Até quando o homem pisou na Lua teve gente dobrando o povo
no papo, anunciando a corretagem: “não perca essa chance! Vende-se um
terreno na Lua! Na minha mão é mais barato!” Seria cômico, se não
fosse trágico. É fato contado e documentado. Os folhetins do século
passado registraram os feitos em manchetes, como aqueles datados de
julho de 1969 que, enquanto a Apollo 11 tocava o solo lunar, um
sergipano chegou a fechar negócio com dois fazendeiros de Minas
Gerais, que ficaram animados com a possibilidade de ter a posse de
ótimos logradouros vizinhos a São Jorge. Olhai por nós, oh pai!
E por falar no Gerente Celeste, nessa jornada é preciso ter fé. E como
tem gente fazendo uso da boa-fé do brasileiro. O papel do interlocutor
com o Divino profissionalizou-se, capitalizou-se e burocratizou-se. Tá
cheio de esperto, se dizendo santo, cobrando taxa e sobretaxa por um
lugar no céu: verdadeiros lobos em pele de cordeiro. O milagre tem seu
preço! No mercado da fé, ganha mais quem vender mais promessas. O
povo, coitado, sofrido e sem opção, é isca fácil para aqueles que
fazem de ofício a oração. “Trago a pessoa amada em três dias!” Mas não
seja por isso: “Ele” está vendo tudo com atenção. Um dia a Casa
Celeste cai!
No Brasil, a malandragem é institucional, carimbada, registrada e
homologada em 10 vias no cartório. Este rincão não é para amadores: de
dois em dois anos o povo tem que escolher a melhor promessa. Toda vez
a esperança se renova, até a primeira curva torta: depois de eleito, o
malandro deixa o povo à deriva. Pelo voto, se vende as maiores
ilusões. E como sabem contar histórias esses candidatos a “malandro
oficial”. Antes de ter seu voto, prometem mundos e fundos; depois de
eleitos, cada um vai cuidar dos seus próprios interesses. Já o povo,
por sua vez, insiste em trocar seu voto por dentadura.
Passa o tempo, mas não passa a vigarice do malandro. Ele se adapta, se
“atualiza”, viraliza, cai na rede. E o povo vai na onda. Compra gato
por lebre, perde o sustento suado, é feito de gato e sapato. A
modernidade não assusta a malandragem: o vigarista se adapta! Vende
inverdades à rodo, sem temer o amanhã. Vende o produto que nunca se
viu: “Fake News”! “Fake News”! “Fake News”!
O papo é reto, direto e franco: abra o olho brasileiro. Já dizia o
saudoso Bezerra da Silva que “malandro é malandro e mané é mané”.
Nesta terra inventada, é certo o desacerto, mas cabe a nós dar um
freio. O certo é o certo; fora disso, é alheio.”